O caminho é para dentro
Recentemente tive um encontro com um grande amigo que partilha comigo um sonho de se aproximar das pessoas de forma mais horizontalizada, num ideal em que os pacientes se sentissem sintonizados com nós médicos com base em um cuidado que preza pela escuta ativa em todas as esferas. Conversamos sobre como as faculdades de medicina não nos ensinaram (e pelo que percebo continuam não ensinando) a importância de uma comunicação estruturada, com clareza e empatia. Criou-se o mito que comunicação é um dom pessoal; não um aprendizado constante com ferramentas que muitas vezes fogem do olhar cartesiano do mundo.
Na Residência Médica, onde temos a tão almejada prática com a mão na massa junto de pessoas mais experientes, não é diferente. Embora tenhamos uma riqueza técnica aprofundada nos casos clínicos, não nos convidam a pensar na importância de passar as informações às famílias e aos próprios doentes, além de manter-se a ideia de que alguns conseguem ser mais empáticos enquanto outros são mais frios e objetivos. Pior que isso, há uma ideia de que alguém tecnicamente admirável tem o direito de ser um péssimo comunicador, causando constrangimento ao conversar com as pessoas de cima para baixo e não abrir brecha para acolhimento ou contato com sentimentos alheios (e nem com os próprios acredito eu).
Frente a isso, ocorreu-me um episódio curioso outra vez no ambiente opaco da Terapia Intensiva. Chegava a hora da visita familiar e os médicos residentes e meu colega plantonista mostravam certa angústia a ponto de um deles relatar: “Essa hora é a pior. Eles não se atentam ao que eu digo sobre o prognóstico e optam por se apegar a falsas esperanças e religiosidade. Choram e sugam minhas energias. Acho que a enfermagem deveria ter uma conversa inicial com as famílias e a gente apenas complementar objetivamente.” Essa fala me chateia, mas não me surpreende.
Vivemos um contexto onde a valorização do médico se dá na superespecialização, na fama das redes sociais e numa medicina protocolar. Obviamente que a capacitação técnica é fundamental com base em evidências e em atualizações. No entanto, ocorre um distanciamento do campo da subjetividade humana, sobretudo no acolhimento dos sentimentos e impressões dos familiares sobre o paciente. Essa perda de identificação humana das pessoas com o médico quebra um elo fundamento do cuidado, muitas vezes, gerando conflitos, angústias e descrença até mesmo em boas intenções iniciais.
No mesmo dia, eu e o residente nos encaminhamos para conversar com os familiares e ele questionou o meu hábito de agradecer as pessoas por terem vindo. Ele me disse que elas tinham mais que ir uma vez que era do interesse delas saber do familiar. Acho que o jovem médico não sabia que algumas pessoas não conseguem comparecer às visitas no meio da tarde por motivos difíceis como a chance de ser demitido ou terem que cuidar de outras pessoas. Agradecer a presença delas é também fortalecer o vínculo e mostrar a sua importância frente a nós.
Para um observador das surpresas da vida, noto que a melhor parte do dia se deu na última visita. Uma senhora que não tinha conseguido vir nas últimas consultas por morar há
mais de 2hs do hospital e não ter condução regular aos fins de semana. Ela não sabia muitas informações sobre o estado grave do seu marido. Antes de explicar todo contexto clínico, optei por ouvir dela como estava sendo passar por aquilo e qual era a sua impressão inicial. No fim, conseguimos nos sintonizar afetivamente, expliquei a gravidade do quadro e, após um tempo juntos, ela saiu mais leve que entrou. Havia então confiança de que ele estava recebendo o melhor cuidado possível. Ao me despedir, eu disse a ela para se cuidar no longo trajeto para casa e ela me respondeu com um olhar sereno: ‘O maior caminho é dentro da gente, meu filho.’
Por fim, lembro-me de uma tirinha do Quino na qual Mafalda pergunta a sua professora: “Para onde vão nossos silêncios quando deixamos de dizer o que sentimos?”. De fato, todos temos algo a ensinar e essa familiar com nenhum conhecimento técnico me remetia a algo precioso nessa troca de aprendizados diários: se não olharmos para dentro do nosso coração para talvez, na sintonia humana, resgatar uma conexão com o outro não seremos plenos no cuidado. Sejamos resistência numa época de distanciamento e etnocentrismo; acolhendo os sentimentos alheios e expressando os nossos. Sejamos mais humanos e, então, mais fortes.